QUINTA-FEIRA, MAIO 13, 2010
A invenção do Dorímetro e fim da História.
Em pleno 13 de Maio, em memória das vítimas da violência institucional e em homenagem a mais um negro humilhado pela PM na velha São Paulo.
dedicado a Sinval Firmo.
Salloma salomão Jovino da Silva
A raiz Dor, poderia nos conduzir até o som ou imagem de Dori, ou Dorival. Não se engane, não há mais lugar para música e nem para a idealização dos mulatos.
Alguém certa vez, me perguntou sobre a dor, se não uma questão apenas de ponto de vista!? Essa noção absoluta de relatividade deve explicar um fato recente que surgiu na mídia. No primeiro momento pareceu tratar-se de uma fábula borgiana. Permitam-me contar...
Há tempos que uma equipe de renomados pesquisadores está montando um aparelho que possa medir a dor. Inclusive já divulgaram que o tal equipamento será capaz de fazê-lo em caráter histórico e retroativo. Um dos chefes do misterioso laboratório deu uma entrevista muito esclarecedora para um famoso jornalista honesto. Esfuziante Sustentou a tese de que quando o tal aparelho chamado “Dorímetro” estiver funcionando, vai ter fim esse papo de cota, reparação, escravidão, holocausto ou denúncia vazia de genocídio. Adeus ao Tribunal Internacional de Haia.
Segundo o Doutor Oto Von Krakauer, responsável pelas pesquisas, a partir de agora vai bastar medir a dor de cada pessoa, de cada nação, de cada civilização e comparar com outras amostras, para saber se “certas reivindicações” de reparação, justiça e equidade têm realmente fundamento ou não. As pesquisa devem cruzar depoimentos orais com detectores de mentira, amostras de DNA e técnicas de craniometria.
O objetivo principal daquele que já é considerado “o invento do século XXI” é justamente resolver disputas e pendengas imemoriais como aqueles do “Oriente”. Sobretudo resultará no fim da ONU e em muita economia de tempo e papel. O proeminente intelectual reconhecido na Europa, que é ao mesmo tempo o proprietário da empresa que fabricará o equipamento, argumenta que “muito dinheiro será economizado em psicanalista, em pesquisa antropológica, arqueológica, filosófica e histórica." Sua ênfase recai principalmente nas duas últimas áreas que, segundo o genial pesquisador, “nada produzem de útil mesmo”.
Observadores mais atentos dizem que no Brasil o mundo acadêmico e científico está em verdadeira polvorosa. Corre à boca miúda que em alguns centros de pesquisa mais renomados, está em curso uma verdadeira corrida maluca em busca de aposentadoria, assim como para acessar as últimas bolsas de estudo disponíveis para “Ciências Humanas”.
Renomados cientistas sociais já se anteciparam e mandaram seus Currículos Lattes, com as devidas cartas de recomendações às ONGs de Empresas como Camargo Correia, Odebrecht, Banco Itaú, Unibanco, Andrade Gutiérrez, Natura, etc. Sob o risco de perder as verbas de pesquisa preferem vender seu requintado trabalho a quem pode pagar alguma coisa, do que, ter de lutar para reverter a atual tendência ou mesmo por uma maior democratização do ensino superior.
Mantendo o anonimato, alguns dão entrevistas pesarosas e vão tristemente dizendo adeus aos longos seminários internacionais custeadas por cofres públicos. Aqueles pesquisadores que já conseguiram manter algum prestígio ou privilégio, obter ascensão ou lucro com monografias, dissertações ou teses, com questões que desafiam a compreensão do surgimento e desenvolvimento de certa humanidade estão mesmo muito preocupados com nova invenção.
Em se confirmando a aquisição do equipamento pelos governos nacionais, é bem provável que nunca mais se gaste um único centavo, com eternas elucubrações sobre colonialismo, imperialismo, hegemonia, escravismo, essencialismo, fenomenologia, existencialismo, revivalismo, religiosidade, cultura, civilização e outros tantos temas. Toda a economia de dinheiro propiciada pelo uso do “Dorímetro”, deverá ser redirecionada para pesquisas sobre as variantes das cefaléias e produção de novos medicamentos pra o cancro-mole.
Prevendo o futuro os cientistas dizem que “em um prazo de dez anos cada pessoa terá seu próprio Dorímetro portátil”, ou ainda poderam adquirir softwares para implantar nos seus computadores pessoais. A idéia central é disseminar eletronicamente uma espécie de terapia contra culpas, impulsos de solidariedades e outras formas arcaicas de subjetividade que ainda marcam e definem os relacionamentos humanos.
Enquanto o invento não vem, vamos assistindo a dor ao lado, a dor alheira. Vamos nos corrompendo pela dor silenciosa das pequenas e imperceptíveis gentes, vamos cultivando a dorzinha gostosamente imensurável do conformismo. A melhor dor é a nossa, porque é a dor mesquinha e intransferível. É melhor porque é uma dor extremamente pessoal, de foro íntimo, essa ínfima, mas grandiosa dor, dor porque nossa.
Essa dorzinha individualista não pode rimar com as músicas ritmadas que se espalharam pelas margens do Atlântico. Certamente o gemido dos torturados pelos americanos e ingleses não pode rimar com o soul de James Brown, é certo que não rima. Não podem rimar com cor tão branca e a voz tão negra do Rithm and blues Amy Winehouse, que também despreza a nossa dor dos ‘outros’ quando alcoolizada em anestesia. Rajada de metralhadora não é rufo de caixa da bateria, bumbo não é bazuca, baqueta não é bala. Nossa vingança adormecida é resultado dessa dor represada. Ela resume-se na certeza de que quem atira mata, mas quem mata, mesmo inocentemente morre um pouco também.
Vimos pela internet em tempo real que, os corpos despedaçados no Sudão e Nigéria, Kossovo e Bagdá depois de apresentados on-line, ficam meio escondidos em um ponto neutro da tela de LCD e somente apodrece nos resquícios de LSD aplicados na nossa alma. Junto com eles, também os nossos corpos inertes permanecem ali por semanas, aparentemente estão intactos, por isso nós mesmo não sentimos o cheiro. Não sentimos também quando parte de nós boia junto com os corpos no Mississipi, nem no cheiro da pólvora gasta com corpos de moradores de rua na zona norte de São Paulo. Não sentimos nada, nem mesmos a ação do tempo, nem do refluir da História. Somos mortos-vivos poderosos, cujos funerais têm que ser refeitos todos os dias para envidar nossas mortes.
Muitos como eu adoram ver a vida se esvaindo aos poucos das células. Os olhos ficam mais opacos ou cinza. Mesmo em roqueiros velhos (lembrem-se que o rock era a imagem da eterna virilidade) nós vemos sem dó os cabelos brancos e as pelancas. Eram homens vitoriosos até então, ainda hoje cheios de medalhas e prestígio revendem lixo novo comprado na indústria de cosméticos. Com o passar do tempo a virilidade torna-se apenas jogo de cena, só há sensualidade na língua, no farfalhar das notas verdes e no brilho das medalhas. Minha conclusão é que o envelhecimento humaniza, mas não salva, a morte ridiculariza e somente a dor suave, profunda e lenta torna-se esclarecedora.
Por tudo isso e, até que o Dorímetro seja colocado em funcionamento, devemos incentivar os jovens de ambos os sexos para que memorizem o maior número possível de datas e nomes de lugares e pessoas. Devemos empurrá-los para os mercados para que comprem mais barbitúricos para a dor do vazio e armas de fogo para usar em festas e piqueniques.